Dificuldades do treinador iniciante
Tenho ministrado um grande número de cursos de adestramento, agility e apresentação em exposições e pude perceber a imensa dificuldade que os alunos têm, mesmo tendo lido o livro “Adestramento Sem Castigo”.
O abismo entre a teoria e a prática é maior do que eu mesmo pensava. Quem já treina há algum tempo, perde a noção das atitudes mais simples, tomadas durante o treinamento, que passam a ser quase automáticas. São atitudes tão óbvias que a gente esquece de explicar.
O neófito não consegue ter um distanciamento do trabalho, suficiente para perceber seus próprios erros.
É aí que o curso se torna importante, através dos diversos recursos didáticos, como a gravação das aulas em VT para discussão posterior ou mesmo pelo “toque” durante as aulas, podemos, com uma certa facilidade, mostrar onde o aluno está errando.
Se você entrasse para um curso de chinês, as primeiras aulas seriam terríveis. Você acharia que jamais iria aprender aquilo. Que é muito, muito difícil… Pois bem, os cães também.
A grande fantasia humana é a obediência. A gente acha que colocando nosso “filhinho” num curso de adestramento, iremos buscá-lo treinadinho e obediente … e que, depois, seria só proferirmos as palavras mágicas e que, automaticamente, nosso cão sairia fazendo todos os comandos. Imaginamos que o treinador deveria resolver todas as nossas dificuldades. Não é bem assim.
Um cão não tem a menor competência para se submeter à obediência, simplesmente porque, não tem capacidade para compreender a dimensão do tempo. Por isso, jamais conseguirá executar uma tarefa, com medo de que, no futuro, haverá uma represália caso ele não o faça. Se explicar o amanhã, o ontem, os quinze ou trinta minutos a uma criança de dois anos é muitíssimo difícil… imagine para um cão.
Um cachorro, como uma criança, não sente o desejo de ser adestrado. Não sabe porque você o está forçando a fazer alguma coisa que não faz parte da lista das suas vontades.
Por exemplo, você quer ensinar o cão a segurar uma bolinha na boca. Na primeira vez que você coloca a bolinha na sua boca, ele fica com a sensação que terá que engoli-la, como as pílulas que o dono deu a ele. O mais importante, então, é explicar como o exercício termina e não, o que o cão tem que fazer. Depois que você colocou e removeu o objeto da sua boca, pela terceira vez, ele começa a se acalmar e aceitar a tarefa.
Concluímos dessa maneira, que, quanto mais curto for o tempo que você levar para explicar ao seu cão o exercício completo, mais rapidamente ele irá aprender. Depois, é só aumentar os tempos e as distâncias.
Modernamente, o objetivo de um bom treinador é o de fazer com que o cão desenvolva o desejo de fazer aquilo que nós queremos que ele faça. Nunca a inquestionável obediência.
Para conseguirmos que o cachorro sinta o desejo de repetir o que acabamos de ensinar, podemos utilizar um cem número de truques como prêmios: uma bolinha para brincar, um pedacinho de salame ou salaminho como isca, um bichinho que faz barulho de miado de gato, um click, enfim, qualquer coisa. Eu prefiro usar eu mesmo. Acho que, com o meu carinho, o cão, além de sentir prazer, se liga muito na minha pessoa e faz tudo para me agradar.
O primeiro passo, então, é seduzir e encantar o nosso aluno. Para isso, no primeiro encontro, não há espécie alguma de treinamento, apenas, conhecimento. Escovo o cão, acaricio o seu queixo e, principalmente, brinco muito com ele. O treinamento só começa, mesmo, quando percebo que ele sente um enorme prazer em passear comigo.
Por incrível que possa parecer, o exercício mais difícil de se treinar é o andar junto. A maioria das pessoas que começa um curso de adestramento tem uma imensa dificuldade em ensinar isso. No entanto é muito fácil. Basta que o cão queira andar junto.
No lugar de ensinar, apenas permito que o cão aprenda. Mostro o caminho através dos estímulos acima referidos, ficando bem atento aos seus sucessos e premiando com um daqueles truques TODAS AS VEZES que ele acerta. Um cão não erra, pelo simples motivo que o conceito de erro é humano. Se ele fizer algo que você considera errado, o erro foi seu que não soube explicar direito. Nunca do cão.
Os cães raciocinam exatamente como um computador, de forma binária: ou é ou não é; sim / não; pode / não pode; zero / um… Se você compreender isso, treinar cães é muito fácil!
Outra dificuldade, que o iniciante enfrenta, é acreditar na capacidade que o cão tem de perceber as nossas intenções. Os cães têm uma percepção extra-sensorial, que os norte-americanos chamam de ESP (Extra-Sensorial Perception), e que lhes proporciona a capacidade de perceber o que estamos pretendendo, embora não consigam entender o significado das palavras.
Os cães conhecem seus donos, pelo menos, duzentas vezes mais do que os donos conhecem seus próprios cães. Eles passam o dia inteiro nos observando, mesmo enquanto estão dormindo ou comendo. Quando você se levanta da poltrona com intenção de sair com seu cão, muito antes de terminar de se levantar, ele já está lhe esperando no lugar onde você guarda suas guias e coleiras ou junto à porta. O dono interpreta essa cena como sendo coincidência ou sequer se detém para interpretá-la.
É muito comum a idéia de que, castigando o erro, consegue-se fazer com que os cães evitem comete-los. Ledo engano!
Nós, humanos, temos uma didática que os cães não conseguem alcançar:
1. aguardamos, pacientemente, que o cão erre, para pegá-lo em flagrante delito;
2. na primeira vez que ele erra, a gente zanga “ai, ai, ai não faça mais isso!”;
3. na reincidência, a gente zanga com mais veemência “Paaaraaa!!!”;
4. no terceiro delito, leva um tapinha, como advertência e assim por diante.
5. até perdermos a paciência e partirmos para a violência.
Ora, quando os cachorros brincam é zangando uns com os outros. É a brincadeira de luta! Aliás, todos os animais brincam de luta.
Quando o dono ralha com um cão, sem estar realmente zangado, o cão entende como um convite à brincadeira e repetirá o motivo da zanga, porque foi divertido ver o dono zangado. Nós temos esse mesmo comportamento ao passarmos um trote ao telefone.
É dessa forma que os donos, sem atinar, ensinam a seus cães tudo o que eles NÃO querem que façam.
Querem ver? O dono de um cão está em casa, trabalhando, ocupadíssimo e não tem tempo de dar atenção ao seu cão. O Dick, que gosta muito dele, vai e deita ao seu lado. Claro que ele não terá a atenção do pai.
Aí, como o cachorro gosta muito do seu dono, permanece ali, deitado por vinte minutos, meia hora. Como ele está quietinho, é bom não mexer em time que está ganhando. O cão não terá sua atenção.
Decorridos quarenta minutos, o cão, vendo que não está conseguindo a atenção almejada, procura o que fazer. Levanta-se, olha para um lado, olha para o outro, olha para o dono mais uma vez… e nada! Aí, ele vê um par de chinelos embaixo da cama…
Assim que ele pega o chinelo, o dono, que estava ocupadíssimo, larga tudo e sai correndo atrás do Dick para não dar tempo de estragar.
O que ele ensinou? Se quiser brincar com papai é só pegar o chinelo.
Como ele não chegou a estragar… – Ai, ai, ai, Dick! Não faça mais isso! Ouviu?
Pronto! É tudo o que faltava para o cão ter vontade de repetir a dose na primeira chance.
Concluímos dessa maneira, que zangar com o cão para ensinar, além de não intimidá-lo, provoca nele o desejo de repetir o motivo da zanga.
É claro que quando zangamos “de verdade”, isto é, quando estamos realmente zangados o cão perceberá com a maior nitidez e se recolherá à sua insignificância. Mas, aí estamos ensinando que o cão só deverá obedecer quando estivermos realmente irritados. Que vida hein?
Escritor, Etólogo e Comportamentalista
Árbitro de Todas as Raças da CBKC - FCI
Árbitro de Adestramento e Trabalho da CBKC - FCI